Eu não nasci de óculos

Se vc parar pra pensar, óculos é um instrumento paradoxal: quem precisa deles desenvolve uma relação de amor e ódio; quem não precisa usar, quer usar. A ponto de o indivíduo comprar uma armação sem lente, só pra posar de 'nerd'. Nada contra. Na verdade, até os invejo. Pois eu estou do outro lado: o dos que precisam usar óculos. Dos que não podem descartá-lo, seja por alguma deficiência visual pequena ou grande. Dos que o mantém como indispensáveis. É com estes que eu falo.

Estas pessoas passam por uma curiosa transformação de vida, atravessando duas fases distintas: a negação e a aceitação dos óculos. Sendo que mesmo a aceitação tem uma faceta de inconformismo. Os óculos, de meras ferramentas, passam a fazer parte de todos os momentos da sua vda. Sorrateiros, passam a integrar a sua pessoa, a fazer parte de vc. Essa relação de simbiose chega a um estágio onde eles são um membro ou órgão do seu corpo, materializando e imprimindo uma nova personalidade. Não são mais a correção da visão, são a própria.

Tudo isso fica muito claro quando se pede para uma criança pequena, ou alguém que te conheça há algum tempo que faça um desenho seu: lá estará eles, os óculos. Rabiscados à frente das mal traçadas linhas que representam o seu rosto. É a sua imagem residual amigo! E não adianta tira-los na hora das fotos, ou tentar usar lentes de contato, nem esbravejar que vc "não nasceu de óculos". As pessoas ao seu redor, acostumadas a te ver com eles vão estranhar e te achar esquisito quando o ver sem. Dirão: "- Tá faltando alguma coisa em vc...".

Até penso que, sem os óculos, talvez falte mesmo. Um fragmento de sua alma talvez, ou sua personalidade, pois uma horcrux os mantém aprisionados naquele pequeno, mas útil, objeto com hastes e lentes: os óculos.